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quarta-feira, 23 de maio de 2012

Espaço Bizarro - The Tenant (1976)


Realizado por Roman Polanski
Com Roman Polanski, Isabelle Adjani, Melvyn Douglas

A “Apartment Trilogy” de Roman Polanski iniciou-se em 1965 com “Repulsion”, tendo o mediatismo de “Rosemary’s Babie” (1969) constituído o vértice de uma inédita reflexão em torno da dimensão psicológica e do terror aplicados ao espaço e ao habitar modernos. O ciclo viria a concluir-se sete anos depois do massacre de Benedict Canyon, com a estreia de “The Tenant” (“Le Locataire”), em Paris.
Roman Polanski personifica um acinzentado inquilino polaco que revela invulgar permeabilidade à envolvente e ao passado da habitação parisiense onde reside: em “The Tenant”, o imóvel de rendimento onde a intriga decorre é recorrentemente actor principal – à imagem do “Anjo Exterminador” de Buñuel – secundarizando-se, quase de uma forma crónica, a figura do humilde e contido Monsieur Trekolvsky.

Apartamento (de uma única assoalhada), casa-de-banho comum, acessos, senhorio e demais habitantes constituem a representação imediata de uma envolvente que, ao longo de mais de duas horas, se vai desdobrando em realidades extrapoladas de paradigmas do arrendatário comum. O enigma, lúgubre e subtilmente estruturado, passa pela existência de uma tentativa de suicídio alegadamente consumada pela anterior inquilina – egiptóloga de profissão – cuja presença se torna progressivamente indissociável do quotidiano de Trekolvsky. De contornos surpreendentes, o desfecho encerra em si uma inesperada carga cénica, culminar da paranoia à qual os aparentemente antagónicos Simone Choule (egiptóloga boémia) e Trekolvsky (burocrata introvertido) se sujeitaram.
É inevitável questionar que espaço (ou conjunto de espaços) é este, capaz de dominar os planos psicológico, comportamental e afetivo dos seus utilizadores. Tratar-se-à de mais uma construção parisiense de início de século, ou a interioridade e a vizinhança imediata que Polanski refinadamente retrata são outras, eventualmente imateriais e de génese patológica? Decorrente da adaptação preconizada pelo próprio Roman Polanski ao romance do surrealista Roland Topor “Le Locataire Chimerique” (1964), “The Tenant" aproxima-se, ainda, de determinadas realidades construídas por Edgar Allan Poe ("The Raven"), Alfred Döblin (desfecho de "Berlin Alexanderplatz") ou Nikolai Gogol (“Viy”, “The Overcoat”).

Não tendo conquistado a Palma de Ouro – “Taxi Driver” e “Die Marquise von O” dividiram atenções e prémios – “The Tenant” ou “Le Locataire” integrou a seleção oficial de Cannes em 1976. Inicialmente encarado enquanto ressaca de “Chinatown”, o “Inquilino” de Polanski adquiriu, já na década de '80, o devido estatuto de filme de culto no universo do absurdo e do terror psicológico. Do elenco, parcialmente composto por velhas glórias de Hollywood (Melvyn Douglas, Shelley Winters, Jo Van Fleet), constituiu-se o competente conjunto de testemunhas de um imperdível soçobro.

terça-feira, 6 de março de 2012

Espaço Bizarro - Brazil (1985)

Realizado por Terry Gilliam
Com Jonathan Pryce, Kim Greist e Robert De Niro

Sam Lowry: “I don't want dessert. I don't want a promotion. I don't want anything.”
Mrs. Lowry: “Of course you want something. You must have hopes, wishes, dreams.”
Sam Lowry: “No, nothing. Not even dreams!"


O primeiro registo de um Terry Gilliam “Pós Monthy Python” não correspondeu a uma comédia inteligente, alicerçada em historicismos desconcertantes e impregnada de humor britânico. “Brazil” desenvolve-se num não-lugar – uma urbe incaracterística e impessoal – e num não-tempo, ao qual se associam marcas de um futurismo disfuncional e inumano.
À realidade cinzenta, pesada e conformada concebida por Gilliam, com reminiscências Art-Déco e de escala monumentalizante, sobrepõem-se, irónica e pontualmente, variações de acordes tropicais de Ary Barroso (“Aquarela do Brazil”). E é num referencial duotónico – oscilante por entre instantes idílicos e uma realidade cristalizada e lúgubre – que se desenrola a intriga de “Brazil”, de inspiração assumidamente Orwelliana (“1984” é uma referência incontornável) e Kafkiana (“O Processo”): Um regime totalitário e belicista, esmagador nos mecanismos a que sujeita os seus cidadãos e obscurantista nos seus propósitos e orgânica, revela-se incapaz de lidar com um erro, pelo qual é, inequivocamente, responsável; Uma sociedade desigual, dividida entre um operariado maioritário e uma elite, resguardada nas suas cúpulas, insiste em negociar poder e competências “ad-hoc”; Uma oposição invisível (e eventualmente inexistente) leva alegadamente a cabo ataques bombistas, que se revelam inconsequentes no propósito de atentarem contra uma engrenagem fascista e subjugadora (extensível até às infra-estruturas das habitações, de aspecto intestinal).

O carácter de Sam Lowry (Jonathan Pryce), um não-herói por excelência, vinca o exasperante registo satírico e negro adossado a “Brazil”. Pelo seu aspecto débil e mediano, por não se conseguir divorciar do sistema e do tráfico de influências, por ser funcionário de um “Ministério de Informações” persecutório e por apenas se realizar, pontualmente, num universo onírico, do sonho e da fantasia. Permanentemente frustrado e equivocado, Lowry encontra nos simbolismos do seu inconsciente a crítica e a iniciativa, mais ou menos turvas, que lhe permitirão, de uma forma gradual, ir questionando a tecnocracia vigente. É, também, a partir dos sonhos, que Sam constrói e sedimenta a personagem de Jill Layton (Kim Greist), por quem se irá apaixonar, e que se apresenta enquanto antítese de um quotidiano tentacular e cinzentista, dominado por homens do regime (Iam Holm veste a pele de um arrogante Mr. Kurtzmann) e por aqueles que, assumidamente, os combatem – Robert De Niro, um marginal “canalizador terrorista”, preconiza inúmeras e imprevisíveis aparições.
“Brazil” corresponde a um denso e refinado pesadelo, magistralmente realizado por Terry Gilliam. É enquadrável num percurso, em três tempos, pelo onírico, iniciado ainda em 1981 (“Time Bandits”) e concluído em 1989 (“The Adventures of Baron Munchausen”). Possui uma imagem emblemática e cuidada, alternando entre um léxico cartoonesco – por vezes próximo do imaginário de Moebius – e a imagem sombria das obras mais negras de Charlie Chaplin, Orson Welles e de Federico Fellini. Inclui referências a diversos ícones da história do cinema, como o são, por exemplo, “Metropolis”, de Fritz Lang, ou “Dr. Strangelove”, de Stanley Kubrick, e encerra em si mesmo inúmeros easter eggs, tais como as referências aos irmãos Max (“Coconuts”,de 1929) ou a aparição do próprio Terry Gilliam, por entre muitas outras acepções.

Da sua dureza – “Brazil” é inevitavelmente um registo raw – emergiu uma das mais célebres batalhas entre realizador e produtora, devidamente relatada pelo crítico Jack Mathew em “The Battle for Brazil”: Em causa esteve o desfecho negro e pouco comercial de “Brazil”, que a Universal procurou condicionar. Mas mesmo apesar de uma aberrante versão adulterada de 94 minutos (com um final feliz e de título consonante), Gilliam triunfou, quer pelo facto das versões “completas” de 132 e de 142 minutos terem sido premiadas e reconhecidas pela crítica, quer por, alguns anos mais tarde, o seu “Director’s Cut” se ter consagrado enquanto filme de culto, relegando para segundo plano os maus resultados de bilheteira registados em 1985.
Nomeada para dois Óscares, que não conquistou, a obra de Terry Gilliam foi premiada pela Los Angeles Film Critics Association, responsável inicial pela merecida notoriedade posteriormente atribuída a “Brazil” e pelo British Film Institute. Arrecadou dois BAFTA awards, e através da Boston Society of Film Critics, viabilizou um merecido galardão a Ian Holm, enquanto actor secundário.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Espaço Bizarro - Tetsuo: The Iron Man (1989)

De Shynia Tsukamoto
Com Kei Fujiwara, Tomorowo Taguchi e Shynia Tsukamoto

Divulgada em 1989 no Japão, "Tetsuo: The Iron Man" continua a ser considerada a obra maior de Shinya Tsukamoto, referência obrigatória do cinema bizarro e do surrealismo japonês das últimas duas décadas. Ainda que justamente reconhecido por filmes mais recentes, como o foram "Tokyo Fist" ou "Bullet Ballet", foi em "Tetsuo" que Tsukamoto mais longe foi, nos domínios da absurdidade, da plasticidade ou da violência: À data com menos de 30 anos de idade, Tsukamoto assinou a realização e o argumento daquela que foi a sua primeira longa-metragem, se se excluir o peculiar, mas ainda assim relevante, "Denchu Kozo no Boken", de apenas 47 minutos.
Ambiciosa e coerente nos seus propósitos, a produção de "Tetsuo" foi verdadeira e assumidamente low-cost. Tsukamoto terá, ele mesmo, concebido e executado parte significativa de adereços e cenários. E à sua notável fotografia, invulgar em quase todos os fotogramas destes cibernéticos 67 minutos, corresponderam recursos técnicos muitíssimo limitados, mas que nem por isso deixaram de enriquecer o resultado final.


A (i)lógica de "Tetsuo: The Iron Man" só é cabimentável no Japão, nação da industrialização e da miniaturização massivas, da contenção e do rigor social nas relações inter-pessoais, da regra e do dever, e de uma imagem urbana de história e complexidade milenares. É, assim, sob influência directa destes predicados, que nos é apresentado o perturbado Tetsuo - protagonizado pelo próprio Tsukamoto - obstinado, na sua essência, por um  fetichismo com elementos metálicos. Curiosamente, apesar de isolado na fruição de um imaginário sensorial, à imagem de um psicótico profundo, a progressão de Tetsuo e da sua dor na intriga de Tsukamoto advém de interacções inicialmente involuntárias e genericamente violentas, provenientes de agentes que lhe são exteriores.
É a realidade do Japão pós-guerra, impessoal (a escassez de diálogos e uma cidade vazia insinuam-no) e  quase opressivo, retratado num limitadíssimo grupo de personagens, que Tetsuo - um mero cidadão patológico ou, noutra leitura, uma conscencialização crítica da "indústria invasiva" - questiona, contamina e, em grande medida, combate e pretende aniquilar.


Filmada a preto-e-branco, a metamorfose belicista e por vezes "hard-core" concebida por Tsukamoto reveste-se de invulgar riqueza estética, eventualmente comparável aos delírios arquitectónicos de Lebbeus Woods, ou ao referencial de algumas das mais representativas obras do cartonista Enki Bilal. O forte cariz industrial, punk e cibernético de "Tetsuo" é habilmente sublinhado pela banda sonora, desenvolvida por Chu Ishikawa (mentor dos Der Eisenrost), ora amplificando momentos de repetição anafórica, ora potenciando um naipe de geniais sequências, das quais se destaca a mítica perseguição na estação de comboio.
Enquanto coerente performance artística, "Tetsuo" não deixa de facultar ao espectador um sem-número de sugestões e de leituras, contrastantes com algumas imagens de objectividade analítica... Marginal, underground e independente, o registo do cirandar de Tetsuo estará longe de constituir uma visão convencional: Numa perspectiva onírica, o "Iron Man" de Tsukamoto encontrar-se-á muito mais próximo de um pesadelo pejado de monstros, turvo e obscurantista, do que de um sonho.
Apesar de mais abastadas nos recursos utilizados, as duas sequelas de "Tetsuo" ("Body Hammer", de 1992, e "Bullet Man", de 2009) não conseguiram nunca fazer juz ao primordial, complexo e alucinante "Iron Man". Apesar de uma surpreendentemente boa aceitação no Japão, o primeiro dos "Tetsuo" foi apenas premiado em Festivais Europeus. Oito anos depois, a genuinidade e o talento de Tsukamoto ser-lhe-iam novamente reconhecidos em solo europeu, ao integrar o júri do Festival de Veneza, em 1997.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Espaço Bizarro - Un Chien Andalu (1929)

De Luis Buñuel
Com Luis Buñuel, Simone Mareuil e Pierre Batcheff

O primeiro registo de Buñuel, gravado, produzido e lançado em Paris, contou com a colaboração do à data seu amigo, Salvador Dali: Trata-se de uma curta metragem muda, de aproximadamente 16 minutos, baseada no imaginário onírico de Luis Buñuel - amplificado e estruturado pela genialidade de Dali (que aqui assumiu muito mais do que o papel de cenógrafo-de-serviço) e financiada exclusivamente pelo clã Buñuel.

“Il était une fois...”

Importa situar “O Cão Andaluz” no contexto artístico europeu: Foi divulgado cinco anos depois do manifesto surrealista, de André Breton. A sua divulgação foi contemporânea dos delírios dadaístas, de Zurique, da multi-disciplinaridade racional da Bauhaus e da ressaca de um expressionismo que se estendeu, de uma forma geral, a todas as artes na Europa Central e de Leste.


“Un Chien Andalu” é, por muitos, tido enquanto a primeira grande manifestação surrealista no cinema. Prontamente censurado em Espanha, foi sendo progressivamente aceite em Paris – vértice de uma Europa em ebulição artística. E apesar de inabituado a ser “mal-tratado” por imagens de dor e por narrativas ininteligíveis, o esclarecido público parisiense aderiu ao delírio vanguardista, imprevisível e intencionalmente irracional de Buñuel.
Da sucessão de imagens a preto e branco não resulta, aparentemente, qualquer tipo de nexo ou, pelo menos, de linearidade. Contraditoriamente, os separadores referem uma cronologia objectiva e um formalismo que são inexistentes. A ironia intencional de Buñuel, que posteriormente reconheceu esperar estreias caóticas, marcadas pela revolta do público, prossegue: Subentende-se uma pulsão afectiva, eventualmente freudiana, desdobrada em vários episódios em tempos díspares, num mesmo espaço edificado (no qual portas e janelas anunciam o imprevisível), permanentemente acompanhada pela essência surrealista do inconsciente, da frustração e do sonho, e adornada por mensagens de cariz popular, simbólico ou meramente alucinogénico (a título e exemplo, parte do processo criativo dos dadaístas baseava-se no consumo de psicotrópicos). 
Enunciam-se, quanto obstáculos à relação entre os personagens protagonizados por Pierre Batcheff e por Simone Mareuil, a compartimentação social entre classes ou o formalismo de uma religião. Dessa pulsão, concretizada ou não no inesperado desfecho da "narrativa", só a opinião do espectador poderá acrescentar mais alguma coisa: Luis Buñuel sempre se excusou a discutir o conteúdo da sua primeira obra.


Fundamental relativamente à génese do cinema fantástico e bizarro, “Un Chien Andalu” é, mais do que uma curta metragem "gore", uma súmula coerente de uma estética e de um processo criativo. Enquanto ícone do surrealismo, a sua expressão e divulgação correspondem à vitória inequívoca de uma corrente, de uma mensagem e de um ideal: Considerado pela elite cultural da época e primordial no referêncial proposto, é plausível pensar-se que "Un Chien Andalu" será mais relevante para história da Arte e do Cinema do que obras como "O Anjo Exterminador", "Triana" ou "O Charme Discreto da Burguesia". É, seguramente, uma das mais conhecidas e enigmáticas curtas metragens de sempre.

terça-feira, 21 de junho de 2011

Espaço Bizarro - Naked Lunch (1991)

De: David Cronenberg 
Com: Peter Weller, Judy Davis, Ian Holm
“Naked Lunch” permanece a mais notória realização do desconexo e marginal William S. Burroughs. Escrito ao longo de parte significativa da década de ’50, foi pela primeira vez publicado em Paris em 1959. Referencial  pela obscenidade e perversidade associadas às narrativas que o integram,  “Naked Lunch” encontra na reversibilidade que (des)articula os seus capítulos, num “não-final” e na expressão do surrealismo e do absurdo – resultantes, em grande medida, do consumo de um delirante leque de drogas – manifestações de genialidade que o consagraram enquanto obra literária de incontornável relevância na História da Literatura Norte-Americana moderna. Depois de uma ambiciosa adaptação com contornos surpreendentes, David Cronenberg realizou, em 1991, o seu “Festim Nú”. Com o valioso agrément de Burroughs, que à data contava com 77 anos de idade.
“Perhaps all pleasure is only relief” (William S. Burroughs)
Em “Naked Lunch”, Cronenberg não se contentou em representar o caótico imaginário literário de Burroughs: Do seu exercício resultou um périplo rico e competente por parte significante da vida e das sensações do próprio William Burroughs. De um contexto cultural anos '50, explicitamente “beat generation”, sobressai uma “surrealidade” de cariz persecutório, na qual espaços e atmosfera são intencionalmente saturados e claustrofóbicos, pautada pelo delírio, pela hipocrisia da generalidade dos personagens e por uma inconsciência global de contornos ambíguos. A William Lee (personagem principal protagonizado por Peter Weller e pseudónimo de Burroughs) permanece apenso um comportamento desprovido de emoção ou de alegria. Da sua insatisfação e frieza, quase sempre permanentes, emergem a incapacidade de lidar com questões como a toxicodependência, a sexualidade (em mutação) ou com uma realização intelectual insuficiente. São múltiplas as referências a uma homossexualidade condicionada, à fruição recorrente de heroína e a um comportamento ciclóide, oscilando entre o passivo e o paranóico.
O consumo intravenoso de insecticida amarelo para rastejantes, que tinge o “Festim Nú” de tons sépia, surge, numa óptica assumidamente superficial, enquanto principal responsável para quase tudo o que sucede: A vida de Burroughs foi bastante mais complexa do que aquilo que uma dependência tende a acarretar, mas com efeito, o assassínio acidental da sua mulher e amiga Joan Vollmer (aqui retratada em Joan Lee, interpretada por Judy Davis), com quem mantinha uma incompreendida e intensa relação intelectual, terá ocorrido num contexto de consumo de droga. À fatalidade, única pelos contornos medievalescos que teve – Burroughs contactou com armas de fogo desde criança – corresponde uma “charneira” de óbvia importância na intriga de Cronenberg. William Lee passa de escritor erótico anónimo e de assalariado a agente secreto; abandona New York e sedia-se numa urbe norte-africana, num território chamado “interzone”; deixa de estar rodeado por baratas e por miriápodes, passando a lidar com “metamorfos” de escala e identidade superiores; passa a adoptar comportamentos e fantasias homossexuais, ainda que associadas a momentos onde a consciência e a inconsciência parecem disputar os seus sentidos.

A escrita e o processo criativo acompanham o desenrolar dos factos. Fazem-no de uma forma  magistral, incorporando um sentido kafkiano de metamorfose e integrando o peso do que é a consciência crítica de um autor, não deixando de parte o imaginário, mais ou menos libidinoso, do próprio William Burroughs (que, refira-se, utilizou uma  máquina de escrever portátil aquando do términus do seu “Naked Lunch”).
Nem sempre ao arrojo tem de corresponder luz. E David Cronenberg atingiu-o, numa toada permanentemente lúgubre, derrotista e melancólica. “Naked Lunch” não é um filme fácil, sendo ainda hoje mal-amado pela crítica por ser hermético na sua significância, por representar um surrealismo (de estética excêntrica) de uma forma pesada, maquinal e analítica, por retratar um asfixiante naipe de sensações, e por propor, à imagem da obra de Burroughs, um final aberto.
Marco na história do cinema e da estética do bizarro, “Naked Lunch” não correspondeu apenas à consagração de Cronenberg: A prestação de Peter Weller é brilhante – não fosse o “Festim Nú” um filme contra-corrente, o Genie Award que recebeu saberia a muito pouco – e Judy Davis encarna, na perfeição, o espírito da genial Joan Vollmer. Sub-valorizado até pelo chamado “circuito alternativo”, “Naked Lunch” não venceu o título de “melhor filme” em nenhum dos certames em que marcou presença.

terça-feira, 22 de março de 2011

Espaço Bizarro - Santa Sangre (1989)

De Alejandro Jodorowsky
Com Adan Jodorowsky, Guy Stockwell, Blanca Guerra

México, década de '80. Através de uma pletórica visão pessoal, Alejandro Jodorowsky caracteriza envolvente e intervenientes de um circo. Do heterogéneo e assimétrico grupo, emergem elos e memórias marcantes, que irão definitivamente condicionar a vida e o carácter de Fénix (Axel/Adan Jodorowsky), único filho de um casal constituído pelo líder da companhia e por uma fanática religiosa. Às representações no plano do onírico e do fantástico, acompanhadas por intrigantes personagens secundários – palhaços silenciosos (que tudo testemunham), animais exuberantes e outras entidades peculiares – associa-se também uma forte crítica social, de inanarrável contorno e plasticidade, retratando um país clandestino, decadente e marginal.


Santa Sangre poderá considerar-se um “para-musical” circense de inspiração surrealista, retratando de um modo dramático, saturado e grotesco as irreversíveis sequelas de um brutal trauma infantil. Mas esta produção italo-mexicana é, essencialmente, um "patchwork" de determinados episódios indissociáveis da vida do próprio Alejandro Jodorowsky, marcada por uma infância complexa e afectivamente deficitária, pelo fascínio do oculto e por uma forte espiritualidade.
A genialidade com que Santa Sangre é filmado, riquíssimo na caracterização, oscilando entre o glamoroso e uma crueza “felliniana”, faz esquecer um injustificável recurso ao Inglês e a alguns efeitos especiais datados, mas ainda assim acessórios. Num elenco pejado de membros do clã Jodorowsky – Axel, Adan, Teo e Brontis – como é recorrente na filmografia do realizador, realçam-se Guy Stockwell (Orgo, pai de Fénix e proprietário do circo), Tixou (a “mulher tatuada”) e Blanca Guerra (Concha), caricatural, herética e distante mãe de Fénix.


Santa Sangre conquistou um Saturn Award, venceu o primeiro prémio do derradeiro ano do “Festival International de Paris du Film Fantastique” e integrou a selecção oficial de Cannes em 1989. Foi também alvo de nomeação para melhor filme do Festival da Catalunha do mesmo ano, onde acabou por ser (injustamente) vencido por “Heart of Midnight”. Em 1990 arrecadou o prémio da crítica no Festival Internacional de Madrid.
Alejandro Jodorowsky possui um percurso artístico único, no qual a direcção cinematográfica - onde “El Topo” é tido por referencial - é apenas um entre muitos capítulos: Integrou, ele mesmo, uma equipa circense; foi “mupeteer” e discípulo de Marcel Marceau; contactou com ícones do surrealismo como Breton ou Topor; conviveu com Beatles (Harrison e Lennon, em particular), James Brown ou Marylin Manson, tendo dirigido a sua cerimónia de casamento com Dita Von Teese; foi próximo de H.R. Giger e assinou, por entre outros, o texto da épica banda desenhada “Incal”, de Moebius.

terça-feira, 15 de março de 2011

Espaço Bizarro - Shadow (2009)

De Federico Zampaglione
Com Jake Muxworthy, Karina Testa e Chris Coppola

David (Jake Muxworthy) é um adepto da natureza e do down-hill, aos quais recorre para afastar memórias menos boas de uma comissão militar no Iraque. Um longo e apelativo percurso de bicicleta numa recôndita área montanhosa – por ele idealizado durante a guerra – revela-se bastante diferente do esperado, forçando o jovem militar a percorrer trilhos menos desejáveis, pejados de más-memórias e nem sempre na melhor das companhias.


“Shadow” apresenta-se-nos com uma fotografia despreocupada, oscilando entre vastíssimas paisagens transalpinas, de aspecto ora idílico, ora “carpenteriano” - por vezes vivenciadas a um ritmo frenético - e uma realidade obscurantista, na qual o magnífico Mortis (Nuot Arquint), cuja imagem se assegura difícil de esquecer, assume um papel incontornável.


Produzido em Itália e meritoriamente realizado por Federico Zampaglione, “Shadow” é um conto de linguagem “slasher”, assente numa alegoria bem conseguida, com um improvável desfecho (tingido de contricção e ironia), e merecedor de devida atenção e reflexão.
"Shadow" foi o segundo filme a ser exibido na jornada inaugural da "2ª Mostra SYFY de Cinema Fantástico", em Lisboa.

terça-feira, 8 de março de 2011

Espaço Bizarro - Lost Highway (1997)

De David Lynch
Com Bill Pullman, Patricia Arquette e Robert Loggia

Fred: “I had a dream about you last night...”
Renée: “Yeah?”
Fred: “You were in the house... calling my name... but I couldn't find you.”


Afirmar que "Lost Highway" é um mero thriller psicológico será redutor. Balizado em duas das suas temáticas predilectas - a Los Angeles surbanita e as manifestações cíclicas de quem vive uma forte perturbação - Lynch filma o sonho, o desconforto, a violência e o mal. O sombrio e a tensão acompanham o desenrolar da intriga, que, desdobrada numa súmula de percepções mais ou menos deformadas, vai revelando ao espectador um peculiar conjunto de contornos comportamentais.


Elogia-se a ambivalência factual, própria da esquizofrenia e indissociável de uma multiplicidade de identidades, relativamente às quais Renné ou Alice (Patricia Arquette) adquirem um papel de rastilho; aborda-se o duelo entre consciente e inconsciente, no qual o patológico Fred (Bill Pullman) nem sempre levará a melhor, complementado por uma cronologia que se apresenta assumidamente subvertida; filma-se, de uma forma única, o espaço arquitectónico e as suas idiossincrasias, com uma forte noção de escala, pontualmente revisitável em "Mulholland Drive"; questiona-se o limite do físico e do psicológico, num processo que encontra no “homem misterioso” (Robert Blake), o vértice de um divino e de uma moral.


Designado pelo próprio David Lynch enquanto “Film Noir do século XXI”, a "Lost Highway" correspondem estética e léxico próprios: dali emergem alguns dos sons primordiais de Rammstein, coabitando com Bowie, Nine Inch Nails ou Marylin Manson - protagonista de uma deliciosa aparição - constituindo-se uma banda sonora icónica. E ao desenrolar dos diversos planos correspondem cores específicas, ângulos e texturas muitíssimo maturadas, registadas com apreciável sensibilidade e grão.
A Bill Pullman assinala-se uma soberba interpretação – provavelmente a sua melhor prestação cinematográfica – acompanhada por um elenco de onde também sobressaem Robert Loggia, Balthazar Getty, Michael Massee e Gary Busey. A "Lost Highway" não se atribuiram prémios, nem se associaram lucros ou lotações esgotadas. Permanece, sim, o magnífico elogio ao âmbiguo, desde as primeiras linhas do argumento, resultante da colaboração de Lynch com Barry Gifford, até ao dúbio interior da moradia "7035-Hollis".