quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Crítica - The Prestige (2006)

Realizado por Christopher Nolan
Com Christian Bale, Hugh Jackman, Michael Caine, Scarlett Johansson, Rebecca Hall

No início do século XX, em Londres, dois ajudantes de mágico, Robert Angier (Hugh Jackman) e Alfred Borden (Christian Bale) ambicionam singrar no mundo do espectáculo como mágicos independentes. Após um acidente trágico, gera-se entre eles, a partir de um já existente sentimento de competição, um ódio crescente. Adicionado a uma inveja desmesurada e à necessidade de ultrapassar e vencer o outro através de todos os meios necessários, ambos são arrastados para uma espiral de crime. Em torno deles orbitam o engenheiro inventor de dispositivos mágicos Cutter (Michael Caine) e a bela e decorativa Olivia (Scarlett Johansson).
"The Prestige" é puro Christopher Nolan. Temos, de um lado, a personagem de Jackman, à primeira vista a mais pacífica e harmoniosa mas que demonstra, após um duro golpe emotivo, uma dualidade e uma ambiguidade dentro de si que levam a motivações e actos assustadoramente imprevisíveis e que evoluem para uma obsessão doentia. Inicialmente despoletada por um desejo de vingança, cedo se perde na sua razão e é esta personagem que, no final, é capaz dos feitos mais horrendos e é a mais isenta de remorso porque acaba por esquecer todos os problemas morais (faz lembrar um pouco a personagem de Al Pacino em "Insomnia", embora as suas motivações fossem diferentes e, ao fim e ao cabo, esta acabar por ser consumida pelo remorso). Do outro, temos a personagem de Bale que, à semelhança do seu Bruce Wayne, se debate com os conflitos internos de uma mente perturbada quase literalmente dividida em duas (que, no fim, acabamos por descobrir estar mais perto da verdade do que pensamos): a de marido/pai, em confronto com a de ilusionista, papel que ele acredita ter de encarnar sempre, para ser o melhor. O que o leva a viver uma vida dupla, fundamentada em segredos e paranóia, insatisfatória tanto para si como para a sua mulher (a então desconhecida Rebecca Hall num papel extraordinariamente intenso, de longe mais importante e notável do que o de Scarlett Johansson, mas um pouco negligenciado). A ligar estas linhas de desenvolvimento, são-nos oferecidas inúmeras outras temáticas interessantes, desde a ideia de que não somos únicos nem insubstituíveis (o sósia), à duplicidade por trás das ilusões e das aparências que confere uma quase impunibilidade às personagens porque nada parece ser real ou certo e todas elas cometem actos mais ou menos duvidosos, passando pela questão de a eficácia e a originalidade de um truque não ser nada sem o devido embelezamento "showbiz" para estimular os olhos e verdadeiramente emocionar as pessoas.


Tanto Hugh Jackman como Christian Bale são magníficos nas suas interpretações. Bale, como já demonstrado em filmes como os mais recentes Batman's, "Equilibrium" ou, no extremo, "American Psycho", tem uma qualidade muito notória de pessoa atormentada e o actor consegue sempre apoderar-se dela e desenvolvê-la de uma maneira magistral. Umas vezes com expressões faciais, outras com explosões de fúria. Jackman, que começou a mostrar o seu verdadeiro potencial desde que lhe foi dado o papel do tumultuoso Wolverine na saga "X-Men", confere à sua personagem a tal ambiguidade requerida, mas de uma maneira muito subtil, camuflada pelo charme (como já acontece em "Scoop" de Woody Allen). A sua intervenção final é memorável, de uma intensidade soberba e de uma paixão rara. São ambos absolutamente credíveis na sua obsessão e no seu ódio. Das outras personagens, o papel da já referida Rebecca Hall é inesperadamente bom. O de Michael Caine ocorre um pouco como o "grilo falante" do todo, no sentido em que é o que tem mais a noção do correcto e estabelece a ligação magia-realidade, já que é ele que faz os truques acontecer. O de Scarlett Johansson é mais um elo de ligação/ruptura e motivo de ódio entre Borden e Angier e serve para adensar a trama e criar mais intriga. Há ainda outra personagem deveras interessante, Tesla, um dos percusores do magnetismo, interpretado aqui por David Bowie. Contemporâneo de Thomas Edison, o pai da electricidade, Tesla retrata a existência da competição cega também na ciência, nesta altura de grandes descobertas. Na Física, electricidade e magnetismo são duas faces da mesma moeda. No meio de toda a dualidade, talvez realidade e magia sejam igualmente próximas e interdependentes.
O filme prima em vários aspectos. Para além de explorar com sucesso os aspectos já descritos, está estruturado e embebido em desconfiança e tensão (como, de resto, é costume nos filmes de Nolan, em particular os dois primeiros e tendo atingido toda uma nova dimensão no avassalador "The Dark Knight"), com a ajuda de um ambiente sempre negro e dúbio, à imagem dos meandros das mentes distorcidas das personagens. Mas aquilo que verdadeiramente o distingue é, mais uma vez, a forma como a história é contada, absolutamente não linear, sem lógica no decorrer das cenas. Não tão drástico como em "Memento" (completamente de trás para a frente), não tão simples como em "Batman Begins" (flashbacks), apenas aparentemente aleatório mas, claro, cirurgicamente premeditado e totalmente estonteante. Vão-nos sendo dados elementos e pistas para podermos perceber a ordem cronológica dos acontecimentos e das relações causa-efeito, ao mesmo tempo que se desenrola o jogo do gato e do rato entre os dois ilusionistas e lutamos, tal como eles, para perceber quem vai à frente, quem é o mais inteligente. O filme é um festival para o cérebro. Um desafio, tal como o era "Memento", que tinha como argumentistas, tal como este, o próprio realizador e o irmão Jonathan (embora este se trate de um argumento adaptado a partir de um livro de Christopher Priest). O argumento tem apenas um senão: a certa altura, próximo do fim, já temos a informação toda necessária para desvendar o final, ou melhor, o segredo de cada um e o seu destino provável. Mas não é fundamental que um filme tenha um "twist" final tão surpreendente que seja impossível deslindá-lo. E, na verdade, ao acompanhar os rivais nas suas tentativas de sabotagem e exposição do outro, todo o filme é uma sucessão de pequenos "twists" bem conseguidos. O final não é menos intenso por isso, os actores certificam-se que lhe é conferida a carga emocional adequada.


Há ainda uma breve mas significativa aparição de uma personagem, Ackerman (Edward Hibbert), o dono do último teatro em que Angier apresenta o seu espectáculo. Esta personagem tem a face disforme de um dos lados e um aspecto arrepiante. Mas parece um delicioso símbolo da ambiguidade latente, ao fim e ao cabo, em todas as personagens. Símbolo das duas facetas de um homem, aquela que ele mostra e aquela que esconde; das duas facetas de um truque de magia, aquela que é vista pelo público e a secreta, dos bastidores. O bem e o mal. E é genial como antes de ele ver o truque d’ "O Homem Transportado", de face para o palco, é a metade disforme que está iluminada e como, depois, quando vira costas, essa metade se esconde nas trevas, ao mesmo tempo que um sorriso ligeiramente maquiavélico se desenha na sua cara. Dá-se uma transformação completa, e a faceta mais assustadora é a "normal".
Com o desenvolvimento florescente da ciência, o mundo, há 100 anos atrás, era já demasiado céptico. A verdadeira magia é fazer as pessoas acreditar nos truques por alguns momentos, é deslumbrá-las o suficiente para se deixarem enganar e recusarem aceitar o que os sentidos lhes dizem. Também o cinema é assim. É Nolan que o diz: "Um realizador é semelhante a um ilusionista, porque contamos a história segundo um determinado ponto de vista e utilizamos técnicas para enganar o público". Christopher Nolan tem, também ele, algo de mágico em si. E prova mais uma vez que o monstro que se esconde nas trevas, a sombra que nos persegue na noite escura, o nosso pior medo mais intrínseco, somos nós próprios. "The Prestige" é o prelúdio perfeito de "The Dark Knight".

Classificação - 5 Estrelas Em 5

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