terça-feira, 2 de setembro de 2008

Crítica - Babel (2006)

Realizado por Alejandro González Iñárritu
Com Brad Pitt, Cate Blanchett, Gael Garcia Bernal

Como já acontecia nos anteriores filmes de Alejandro Gonzáles Iñárritu, “Amor Cão” e “21 Gramas”, “Babel” é tecido de histórias cruzadas, aparentemente independentes umas das outras, e de personagens de alguma forma ligadas entre si, ligação essa que nos é dada a conhecer à medida que o filme se desenrola. Neste caso, tratam-se de quatro grupos de personagens, quatro histórias, quatro raças e culturas, em três continentes diferentes. Richard e Susan (Brad Pitt e Cate Blanchett), um casal de norte-americanos de férias em Marrocos; Amelia (Adriana Barraza), a ama mexicana dos filhos daqueles, que se tem de deslocar, com o sobrinho Santiago (Gael García Bernal) ao seu país-natal para o casamento do filho; dois jovens pastores de cabras no deserto marroquino; Chieko (Rinko Kikuchi), uma adolescente japonesa surda-muda em conflito consigo mesma e com o pai (Kôji Yakusho). Ao brincarem com uma caçadeira que deveria servir para afugentar coiotes, os dois rapazes marroquinos atingem um autocarro de turistas e ferem Susan. No meio do nada, Richard vai lutar como pode para a salvar, enquanto, em casa, a ama das crianças, bem-intencionada, decide levá-las ilegalmente ao México para não perder o casamento do filho. Entretanto, enquanto se tenta encontrar a ela própria no caos da vida social de Tóquio, Chieko descobre que a polícia anda à procura do pai.


Iñárritu é, como sempre, excelente a explorar a fundo as emoções e as motivações das personagens, ao mesmo tempo que cria um ambiente de constante tensão, como se estivesse sempre uma tragédia iminente, um medo sempre implícito, símbolo da fragilidade e da inconstância dessas mesmas emoções e motivações do bicho homem e também do aleatório da vida e do nosso percurso. Se admitirmos (um pouco redutoramente) que em “Amor Cão” o tema principal (em toda a sua complexidade) era o amor e em “21 Gramas” a dor, em “Babel” o tema principal é a solidão. E se aqueles tinham como pano de fundo um só país (no primeiro o México, no segundo os EUA), aqui temos o mundo, na sua diversidade, na sua grandeza, mas também na sua pequenez, com papel activo nessa solidão. Porque, apesar de a tecnologia ter vindo encurtar distâncias, a verdade é que a distância entre dois seres humanos é cada vez maior, estamos cada vez mais isolados. E esse isolamento advém principalmente da nossa incapacidade crescente de fazer algo muito simples: escutar. É um problema que ultrapassa a barreira da língua, a barreira da raça, a barreira da cultura. Senão escutarmos, jamais compreenderemos. É para este facto que Iñárritu nos quer sensibilizar.
Logo nos momentos iniciais do filme, ainda antes de vermos qualquer imagem, ouvimos um vento que assobia e passos em gravilha. A imagem que segue é a de um homem de cara vincada, caminhando num terreno árido com um fardo às costas. É uma cena muito simples, mas ao mesmo tempo muito significativa, como uma premonição. Contra a amplitude do cenário e a sua nudez, trata-se de uma personagem só, frágil e carregando um peso. É tal e qual a caracterização de Richard e Susan. Um marido e uma mulher que já não se conhecem, que não souberam lidar com a perda de um filho e se perderam a eles mesmos e ao outro, que vêm a Marrocos para estarem (ainda mais) sós (tanto Brad Pitt como Cate Blanchett são soberbos a personificar a dor, física e não só). A contrastar com este cenário vazio e cinzento (interior e exterior), está a cor e a alegria do México e da festa do casamento, onde tudo é celebração da vida, até a noiva grávida, mas onde, mesmo assim, se denotam caras que transparecem solidão. É de notar o retrato das diferenças culturais nas duas crianças norte-americanas, à vez maravilhadas e chocadas com aquilo com que se deparam, e cuja inocência e ausência de preconceitos lhes permitem adaptar muito facilmente às novas circunstâncias. Por outro lado, a adolescente japonesa revela outro tipo de solidão: a inerente à adolescência e à necessidade de aceitação e compreensão. O facto de ser surda-muda só vem enfatizar o sentimento de marginalidade, da diferença que nos torna tão inalcançáveis pelos outros (a cena em que ela acusa o pai de não a escutar é brilhante). Esse sentimento é tão gritante que tem como consequência o seu desejo de contacto físico a qualquer custo, já que o despertar da sexualidade acaba por ser mais uma questão complexa com que lidar. O mesmo é também retratado no mais jovem marroquino, que tem sentimentos estranhos pela irmã.


A câmara de Iñárritu, oscilante e, por isso, sempre presente consegue, mais uma vez, mostrar que as pessoas retratadas são absolutamente verosímeis e palpáveis. As rugas, a poeira entranhada, o sangue seco. A luz e a cor são também notáveis na caracterização dos espaços, tanto interiores como exteriores. Em cenários tão diferentes, o realizador consegue manter a mesma sensação de impessoal, como se o espaço fosse sempre mais forte do que a pessoa que nele se encontra. A solidão pode sentir-se tanto num deserto desolador de cores esbatidas, como numa festa colorida repleta de gente (conhecida ou desconhecida), como numa das maiores cidades do mundo iluminada dia e noite.
Depois de nos mostrar como cada personagem lida consigo própria e com os seus pares (Richard com Susan e vice-versa, Amelia e Santiago no casamento, a família marroquina antes e depois do incidente com a caçadeira, Chieko e o pai), vem a parte, se possível, ainda mais difícil. Aquela em que temos de interagir com pessoas diferentes de nós, seja linguística, cultural ou socialmente. Ou simplesmente porque são terceiros. Quando Richard procura desesperadamente ajuda na remota aldeia de Marrocos onde ficam retidos, ou compreensão tanto nos restantes turistas como nas autoridades que têm o poder de salvar a esposa; quando Amelia e Santiago enfrentam os fiscais da fronteira (curiosamente de traços sul-americanos); quando pacatos pastores enfrentam a tirania da polícia; quando Chieko tenta explicar por gestos e mensagens escritas aquilo que não pode dizer. Subjacente a isto, há ainda um outro factor, o papel dos meios de comunicação e da política. O incidente do tiro perdido é, antes de qualquer investigação, interpretado de imediato como um ataque terrorista contra um cidadão dos EUA (mal-entendido não devido à língua, mas ao preconceito e ao terror instaurado por todo o mundo e respectiva intolerância cega) e transformado num incidente internacional que leva à obrigação da implacabilidade da polícia marroquina para com os envolvidos. É esta mesma atitude que se reflecte na fronteira, a de polícias do mundo, superiores a tudo e todos.


A torre de Babel foi construída pelos homens e tinha como objectivo chegar ao céu. Quando Deus soube, decidiu castigá-los, desdobrando a única língua universal em inúmeras línguas diferentes, para que não mais nos compreendêssemos. A ambição teve como preço a solidão. E, no entanto, o realizador não pára de nos lembrar como continuamos todos ligados. Em “Babel”, já não estamos apenas ligados aos da nossa cidade, aos do nosso país. Estamos todos intimamente ligados porque partilhamos um mundo, um mundo caótico onde é cada vez mais difícil co-existirmos pacificamente porque deixámos de comunicar. E, por essa razão estamos também irrevogavelmente separados. Mas, de uma maneira ou de outra, as nossas acções têm repercussões muito vastas porque continuamos a depender de outras pessoas para sobreviver. Seja de alguém que amamos, seja de um estranho que, numa determinada altura, tem o poder de modificar a nossa vida para sempre. E vamos acabar por mostrar toda a nossa fragilidade, toda a nossa nudez a outros, ou seja, vamos acabar nas mãos de outros. Como Chieko na varanda. Como Susan no seu momento mais embaraçoso e, não obstante, num dos momentos mais ternurentos do filme.
Como diz o realizador, por muito diferentes que sejamos, todos sentimos a dor da mesma maneira. E, apesar disso, continuamos a infligi-la indiscriminadamente. O que torna os filmes de Alejandro Gonzáles Iñárritu extraordinários é a maneira simultaneamente terna e intensa como ele nos mostra como somos parecidos uns com os outros e como isso, em vez de facilitar, vem dificultar a nossa vivência. E, como somos todos tão parecidos, todos compreendemos e todos sentimos aquilo que ele conta. E como somos tão diferentes, cada um fá-lo à sua maneira. “Babel” é um filme muito humano, muito realista, muito verdadeiro e muito tocante.


Classificação - 5 Estrelas Em 5

0 comentários :

Postar um comentário