Realizado por Kar Wai Wong
Com Norah Jones, Jude Law, Rachel Weisz, David Strathairn, Natalie Portman
Com Norah Jones, Jude Law, Rachel Weisz, David Strathairn, Natalie Portman
Filme angustiante, melancólico, filme intenso, quase sufocante e, ao mesmo tempo, tão mas tão familiar. Encontros e desencontros, partidas e chegadas, sentimentos, muitos sentimentos perdidos e encontrados... eis que nos chega o novo filme de Wong Kar Wai, o primeiro em Hollywood.As primeiras imagens deste precioso My Blueberry Nights (ou do feliz título português, O Sabor do Amor), deixam de imediato antever aquele que é o cenário por excelência do cinema do realizador de Hong-Kong: meio urbano, cosmopolita, escuro, numa mistura quase mimética do film-noir pós-moderno com o "road-movie" ou o "boy meets girl", com um horizonte dominado por comboios que, barulhentos, rompem a paisagem. Esses comboios - tão presentes quanto em 2046 - serão nota subliminar constante ao longo do filme. Trazem-nos o símbolo máximo daquele que será o ponto base de toda a narrativa e de grande parte do trabalho de Wong Kar Wai.
Kar Wai, cineasta de que gosto particularmente, já nos habituou a uma linguagem própria, que roça a poesia. Depois de 2046, que, em particular, com todo aquele cenário operático, coloca a fasquia bem alta, o realizador apresenta o seu primeiro grande filme em inglês e com actores de Hollywood. Muitos puristas defendem que o simples abandono dos cenários e do ambiente oriental fará com que este seu filme caia na tendência para o mainstream. A verdade, porém, é que nada disso acontece. Este Blueberry Nights - tão badalado por apresentar Norah Jones como protagonista - acaba sim por se transformar num belo exercício sintetizador de toda a carreira do realizador, argumentista e produtor. É certo que My Blueberry Nights não vai tão longe quanto In the Mood For Love (2000) ou 2046 (2004), mas acaba por se apresentar como veículo interessante daqueles que serão os temas centrais da obra de Wong Kar Wai: isolamento, amores encontrados e desencontrados, vidas humanas consumidas pelo desgosto ou a noção arbitrária que é o amor, muito centrada naqueles "momentos que já passaram e não voltam".
Numa primeira abordagem, e para todos aqueles cinéfilos que estarão já cansados da língua inglesa como veículo de cinema, o argumento linguístico pode ser um elemento deslocado, mas de facto aqui parece funcionar, já que vem dar destaque ao fenómeno da globalização e ao lugar das pequenas coisas, dos sentimentos e emoções mais intimistas, neste mundo frenético. My Blueberry Nights tem como protagonista Norah Jones. Lizzie é uma mulher comum, doce, simples. Desfeita emocionalmente por um relacionamento que não dá resultado, resolve mudar de vida, afastando-se de Nova Iorque e fazendo uma viagem por diversas cidades americanas. A motivação para essa mudança parte, indirectamente, de Jeremy (Jude Law), um jovem inglês que Lizzie conhece na noite do seu desgosto, dono de um café/restaurante nova-iorquino (filmado no café Palacinka na Grand Street), com quem Lizzie partilha as suas mágoas ao mesmo tempo que, juntos, saboreiam uma apetitosa tarte de mirtilos. A tarte, e as noites que dão o nome ao filme, acabam por funcionar como elemento aglutinador de toda a narrativa. Aquelas noites passadas com Jeremy, apenas a conversar sobre a vida, encontros e desencontros, e a saborear a tarte, acabam por ser "aquele momento" simbólico dessas pequenas coisas e sentimentos inexplicáveis com que nos cruzamos diariamente. A viagem de Lizzie, que insere My Blueberry no género do "road movie", acaba por ser uma viagem interior. Lizzie conhece outras pessoas, outros problemas, percebendo que afinal o sofrimento é apenas uma parte do percurso. É certo que o cliché fica demasiado exposto, mas é também verdade que a forma como o "cliché" é filmado acaba por fortalecer essas mesmas evidências.
Kar Wai traz para esta sua obra todo um "savouir-faire" que enriquece o filme. Estão lá aquelas marcas indeléveis do autor: a câmara que, lentamente, faz destacar os seres-humanos que capta, o slow-motion que transfigura tempos e espaços ao congelar na tela "aqueles momentos". Apesar de por vezes a realização apostar em demasia nessas técnicas, a verdade é que funciona, aumentando aqui e ali a carga dramática e a simbologia das sequências. Este filme vem confirmar Wong Kar Wai como o "Mestre do Tempo", como Dennis Lim apelida o realizador chinês no seu artigo de 19 de Novembro para o New York Times. E a designação não podia estar mais acertada. Kar Wai capta o tempo como ninguém ou, melhor, o tempo perdido. A sua mestria ao transpôr para a tela aqueles momentos únicos, irrepetíveis, traz para o cinema muito da magia que caracteriza a fotografia por exemplo: a fotografia é a representação de um e um só momento num dado espaço e tempo. Filmado em apenas sete semanas e encarado pelo próprio realizador como um filme de férias, leve e moderno, My Blueberry Nights acaba por se revelar intenso e trivial ao mesmo tempo, dividindo a opinião de críticos e admiradores da obra de Kar Wai. Muitas dessas criticas são apontadas a Norah Jones e à sua inexperiência. Aconselhada pelo próprio realizador a ser natural e não optar sequer por ter aulas de representação, o protagonismo de Jones acaba, quanto a mim, por ser um dos trunfos do filme, já que traz para a narrativa a imagem de simplicidade e candura que esta lhe exigiria.
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De certa forma, Norah Jones, com a sua Lizzie, é os nossos olhos ao longo daquela viagem. Cumpre, portanto, a sua função. O intimismo e química que se sente entre Jones e Jude Law também ajudam. Os desempenhos verdadeiramente intensos, esses, são-nos entregues pela cada vez mais madura Natalie Portman e, mais ainda, pelos fabulosos David Strathairn e Rachel Weisz, que interpretam o papel de um polícia também ele consumido pelo desgosto amoroso e pelo álcool e sua ex-mulher, causadora desse desgosto. As três personagens, sendo elementos marginais na narrativa, dominam-na inteiramente nos momentos em que aparecem, dada a intensidade dramática das suas presenças.
Muita da força do cinema de Kar Wai parte da sua própria metodologia de trabalho. É conhecida a forma como o realizador/produtor/argumentista domina as filmagens e, literalmente, explora o seu caminho durante o tempo de produção. O filme vai-se construíndo, paulatinamente. Kar Wai parte para as filmagens apenas com um esboço da narrativa, optando por, geralmente, ir adicionando tudo o que pretende ver na tela à medida em que filma. Além de continuamente reformular o que pretende transpôr para a tela, Kar Wai acaba também por reciclar muitas das ideias pensadas para outros filmes, reafirmando-se como verdadeiro autor num cinema dominado cada vez mais pelos interesses económicos. Em suma, filme a ver. Quanto mais não seja por uma das mais belas sequências que tenho visto em tela nos últimos tempos: o beijo fica a curiosidade.
Classificação - 4 Estrelas Em 5
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