Com Tenzin Thuthob Tsarong, Gyurme Tethong, Tulku Jamyang Kunga Tenzin
Numa altura em que o Tibete volta a estar nas notícias pelas razões erradas, é sempre bom rever Kundun, de Martin Scorsese, um dos filmes que melhor conseguiu captar a essência da cultura tibetana, simbolizada pelo Dalai Lama, sua figura cimeira. Apesar de ser um dos filmes mais menosprezados na carreira de Martin Scorsese, não só pela critica como também pelos fãs do cinema daquele realizador, Kundun traz-nos muito mais do que um simples "biopic" épico. Podendo ser lido juntamente com The Last Temptation of Christ (Scorsese, 1988), Kundun recupera – e recentra – alguns dos principais temas e preocupações da carreira de Scorsese, pelo que não poderá ser esquecido enquanto produto de autor e afirmação pessoal acerca do mundo e da história global.
Sendo o resultado criativo de mais uma colaboração entre Scorsese, a "sua" editora/montadora de sempre, Thelma Schoonmaker, Dante Ferretti e a melódica composição sonora de Philip Glass (The Hours, Cassandras' Dream), Kundun tem como ponto principal uma luta ideológica por integridade no Tibete do século XX, no preciso instante em que a China comunista de Mao Tse Tung invade o país. Confrontado com o progresso galopante que chega ao Tibete, o jovem Dalai Lama vê-se divido entre a sua individualidade e o bem comum do seu povo, num dilema existencial muito semelhante ao enfrentado pelo Jesus Cristo de Willem Defoe. Por um lado, Dalai Lama sente a necessidade dos bens do progresso, da industrialização, da reforma do seu próprio governo milenar. Porém, numa outra perspectiva, receia pela preservação da velha teocracia Tibetana, em total oposição com a China Comunista e imperialista. Enquanto homem de modernidade, o Dalai Lama sente curiosidade em relação aos automóveis, rádios, telescópios e – ou não se tratasse de um filme do senhor cinema Martin Scorsese – projectores de cinema. No entanto, a tradição confronta-o constantemente. A realização de Scorsese intensifica claramente o carácter ritualístico daquele mundo, onde o Dalai Lama é, ao mesmo tempo, mentor cultural e espiritual de todo um povo. A juntar a este dilema, também nós partilhamos com aquela personagem simultaneamente mítica e tão mundana, a dor do inevitável confronto com o poderio militar da China de Mao: logo após a anexação pela força do Tibete, a questão gira em torno da permanência do Dalai Lama no Tibete ou a sua partida para território Indiano. Também nós percebemos de imediato que se o Dalai Lama fica no Tibete, este nada mais será do que um mártir e o país um pedaço de terra destruído. A solução – já conhecida historicamente – passa pelo exílio. O sacrifico do individuo é feito em prol do colectivo. O indivíduo atormentado que caracteriza o cinema de Martin Scorsese é assim recuperado. As vestes de santidade daquela figura ímpar da história da humanidade escondem o isolamento de um homem, num tempo que não o aceita.
Inspirado pela música de Glass, todo o filme respira uma certa nostalgia de um cinema de outro tempo. Scorsese presenteia-nos com uma realização segura, com a toada certa, mas sempre deixando a sua marca. Repare-se nos movimentos de câmara constantes e quase imperceptíveis, na atenção quase obsessiva, de tão meticulosa, aos pormenores – note-se a técnica que o realizador mais tarde empregará em The Aviator (2004), ao focar com um close-up quase microscópico a objectiva da arcaica máquina fotográfica que o jovem Dalai Lama investiga. Toda a narrativa parece transpirar passado, afecto e respeito perante uma civilização e cultura. O texto de Melissa Mathison – autora de E.T. (1982) – recria um ambiente de quase magia Disney (não é à toa que a Disney seja o estúdio por trás desta produção) a que a realização competente de Scorsese responde com mestria, confirmada por um trabalho de edição cúmplice e não castrador. Com tal esforço criativo, o filme como que avança por si só, valendo no seu conjunto como testemunho quase documental de um tempo de ruptura e mudança cultural. Na verdade, esse esforço de colectivo sai ainda mais reforçado se considerarmos que grande parte do elenco é composto por não-actores, que se entregaram totalmente à produção.
É claro que Kundun não deixa de ser um filme de estúdio, marcado pela convencionalidade da sua narrativa, pela toada quase irrealista da mesma, mas no fim, não podemos de todo ficar indiferentes ao trabalho e rigor técnico da realização de Martin Scorsese, que transforma a grandiosidade do projecto num filme com momentos de grande intimismo e minimalismo, como sejam os que retratam a intimidade e simplicidade da criança que se transforma em Dalai Lama. A critica, de forma quase unânime, sentiu este projecto como estando um pouco marginal na carreira do realizador ítalo-americano. Porém, o subtexto temático do cinema de Scorsese está bem presente, os velhos elementos da sua cinematografia estão todos lá. Como refere Richard A. Blake em Street Smart (2005), Kundun acaba por manter as principais características do gangster Scorseseano. Por um lado, temos todo um modo de vida ameaçado por uma força maior, que detém o poder – a China comunista; por outro lado, temos também um microcosmo de sociedade, fechada sobre si própria, sobre a sua tradição, ignorando o progresso, que cuida dos seus por entre alguma corrupção dos valores que a fundaram; por fim, e talvez o mais determinante, temos um individuo isolado, atormentado pela sua consciência, que teima em lutar contra o colectivo e que procura viver entre a ideia de progresso individual e colectivo. Este é sem dúvida um daqueles filmes a ver ou rever, por todos aqueles que seguem o trabalho de Martin Scorsese como verdadeiras lições de história do cinema.
Inspirado pela música de Glass, todo o filme respira uma certa nostalgia de um cinema de outro tempo. Scorsese presenteia-nos com uma realização segura, com a toada certa, mas sempre deixando a sua marca. Repare-se nos movimentos de câmara constantes e quase imperceptíveis, na atenção quase obsessiva, de tão meticulosa, aos pormenores – note-se a técnica que o realizador mais tarde empregará em The Aviator (2004), ao focar com um close-up quase microscópico a objectiva da arcaica máquina fotográfica que o jovem Dalai Lama investiga. Toda a narrativa parece transpirar passado, afecto e respeito perante uma civilização e cultura. O texto de Melissa Mathison – autora de E.T. (1982) – recria um ambiente de quase magia Disney (não é à toa que a Disney seja o estúdio por trás desta produção) a que a realização competente de Scorsese responde com mestria, confirmada por um trabalho de edição cúmplice e não castrador. Com tal esforço criativo, o filme como que avança por si só, valendo no seu conjunto como testemunho quase documental de um tempo de ruptura e mudança cultural. Na verdade, esse esforço de colectivo sai ainda mais reforçado se considerarmos que grande parte do elenco é composto por não-actores, que se entregaram totalmente à produção.
É claro que Kundun não deixa de ser um filme de estúdio, marcado pela convencionalidade da sua narrativa, pela toada quase irrealista da mesma, mas no fim, não podemos de todo ficar indiferentes ao trabalho e rigor técnico da realização de Martin Scorsese, que transforma a grandiosidade do projecto num filme com momentos de grande intimismo e minimalismo, como sejam os que retratam a intimidade e simplicidade da criança que se transforma em Dalai Lama. A critica, de forma quase unânime, sentiu este projecto como estando um pouco marginal na carreira do realizador ítalo-americano. Porém, o subtexto temático do cinema de Scorsese está bem presente, os velhos elementos da sua cinematografia estão todos lá. Como refere Richard A. Blake em Street Smart (2005), Kundun acaba por manter as principais características do gangster Scorseseano. Por um lado, temos todo um modo de vida ameaçado por uma força maior, que detém o poder – a China comunista; por outro lado, temos também um microcosmo de sociedade, fechada sobre si própria, sobre a sua tradição, ignorando o progresso, que cuida dos seus por entre alguma corrupção dos valores que a fundaram; por fim, e talvez o mais determinante, temos um individuo isolado, atormentado pela sua consciência, que teima em lutar contra o colectivo e que procura viver entre a ideia de progresso individual e colectivo. Este é sem dúvida um daqueles filmes a ver ou rever, por todos aqueles que seguem o trabalho de Martin Scorsese como verdadeiras lições de história do cinema.
Classificação - 4 Estrelas Em 5
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