Com George Clooney, Tilda Swinton, Tom Wilkinson e Sydney Pollack
A sequência inicial, mais do que suspense, promete mistério e inexplicabilidade. Os primeiros minutos parecem sugerir uma narrativa muito centrada em mal-entendidos, em fragmentos disfarçados de linearidade; em suma, intenso trabalho para a audiência. Ora, a promessa é cumprida de princípio ao fim. Tony Gilroy, argumentista dos três filmes sobre Jason Bourne, não deixa os seus créditos por mãos alheias nesta sua primeira incursão pela realização – o resultado final é precisamente um thriller destemido, que muito me fez relembrar The Conversation (1974), fabuloso filme de Francis Ford Coppola, mantendo sempre um ritmo intenso, seguro e tremendamente desafiante para a audiência. Muito do cinema que nos chega de Hollywood assume-se, sem complexos, como sendo sucessivos retratos de uma América. Os bons filmes ficam para a posteridade como retratos específicos de cada tempo naquele país. Foi assim com The Conversation – para sempre ligado ao escândalo de Watergate –, será assim, aposto eu, com este Michael Clayton. É certo que o tempo confirmará, ou não, esta sensação, mas é inegável a força da dimensão estética, narrativa e compositiva do primeiro filme de Tony Gilroy. Muito mais do que um thriller, Michael Clayton parece funcionar como um comentário fílmico sobre várias questões que caracterizam a globalização e o mundo empresarial com que temos de lidar: o lugar do indivíduo nesta sociedade, a dimensão e peso das corporações multinacionais na sociedade, os valores dessa sociedade, as relações interpessoais.
Tudo isto é sugerido pela intensa sensação de enclausuramento e cansaço que o filme respira até final – alcançando o seu ponto máximo na cena final, com um Cloney transfigurado, num close-up que mostra o seu desespero silencioso perante o que o rodeia. Gilroy apresenta-nos um retrato intenso do ser humano, aqui corporizado em Michael Clayton – George Cloney, num dos seus melhores desempenhos de sempre, de tão banal e casual –, um funcionário de uma prestigiada firma de advogados Nova-Iorquina, liderada por Marty Bach (Sydney Pollack). Clayton é como que um mediador, um "faz-tudo", sendo responsável por resolver as pequenas e grandes situações, encarnando um pouco o papel de "homem da limpeza", quando as coisas não correm bem ou à empresa ou aos principais clientes. A juntar a essa face profissional, temos um Michael Clayton que vê a sua vida privada arruinada: casamento falhado, negócios pessoais que não resultam, um vício de jogo que procura controlar. É precisamente nessa fase que o filme nos coloca, quando Michael Clayton se vê confrontado com mais uma provação. Ao mesmo tempo que a empresa tem de lidar com um caso mediático que opõe uma grande corporação a um conjunto de pequenos litigantes, Michael terá pela frente o aparente colapso nervoso de Arthur Edens (Tom Wilkinson) – não só o advogado a liderar o processo de defesa da corporação, como também amigo pessoal e mentor de Clayton –, algo que terá de resolver em pouco tempo.
Aquilo que parece ser um argumento rudimentar de um qualquer "court film" – filme de tribunal (género em que Hollywood também se tem vindo a especializar) – esconde no entanto elementos bem mais representativos, que transformam este thriller num verdadeiro comentário sobre a actualidade. Por entre algum jargão técnico de direito ou questões relacionadas essencialmente com o caso específico que está a ser disputado em tribunal, surgem subtilezas (ou não) no argumento, que elevam o filme à categoria de grande obra de 2007. A verdade é que toda a narrativa sugere uma guerra silenciosa, travada por cada indivíduo, que, subtilmente e, diria, propositadamente, é marginalizada ao longo do filme por toda a história em torno das grandes corporações. Como eixo narrativo principal, temos então o caso jurídico entre a U-North (a tal corporação) e um grupo de cidadãos. Para lá desse eixo, temos o retrato – diria intimista – do "peixe-miudo" que dá tudo pela defesa das respectivas entidades patronais: Karen Crowder, num desempenho perturbador por parte de Swinton, do lado da U-North como representante do gabinete jurídico, e Clayton, com funções que o próprio tem dificuldades em descrever. Ambos os indivíduos sacrificam as suas vidas pelas empresas que representam, vendo-se constantemente forçados a ignorar as suas próprias consciências de forma a terem, talvez, algum reconhecimento profissional. Aqui entra aquela que parece ser a questão que maior dramatismo e intensidade dá ao filme – a problemática da consciência individual vs. Colectivo e poderoso. Apostando em desempenhos dramáticos brilhantes – Michael Clayton é o filme com mais nomeações para os OSCAR nas categorias de representação –, Gilroy apresenta-nos retratos inquietantes de diversos confrontos entre verdade escondida e verdade revelada, que recuperam, diria, algum do espírito dos filmes feitos na Hollywood dos anos 70.
Gilroy, de certa forma, evoca mesmo um Coppola pós-padrinho que nos deu um belíssimo The Conversation, verdadeiro hino ao mundo "real" das escutas, da vigilância. Salvaguardando as devidas distâncias entre um senhor Coppola e um Tony Gilroy com futuro, acredito mesmo que Michael Clayton, não sendo perfeito, acaba por funcionar muito bem, demarcando-se de filmes do género, ao apresentar uma contemporaneidade em conflito. É o conflito entre corporações, um conflito entre indivíduos e, mais ainda, um conflito de consciência individual. Com um argumento engenhoso, complementado por uma realização cuidada e eficiente – que contrasta em absoluto com a de Bourne: Supremacy por exemplo –, uma edição bem pensada, que deixa o filme avançar de forma fluida, Michael Clayton poderia ser a surpresa do ano na categoria de melhor filme, caso não estivessem em competição obras igualmente emblemáticas. A expressão final de Cloney – tão simples, tão banal e, ao mesmo tempo tão humana – é o exemplo máximo de tudo isso e podia muito bem sumarizar todo o filme. Só ai, Cloney ganha a nomeação para os prémios da academia.
Classificação - 4 Estrelas Em 5
0 comentários :
Postar um comentário