Protagonizado por um irreconhecível Robert De Niro, naquele que seria o 5º filme com Martin Scorsese, e Jerry Lewis, bem afastado do registo cómico que o celebrizou, eis que estreia em 1983 aquela que viria a ser a primeira grande comédia negra de Martin Scorsese. Apesar de a critica menosprezar um pouco as comédias de Scorsese, poder-se-á afirmar com alguma segurança que até é um registo onde o realizador Nova-Iorquino se sai bem. The King of Comedy (Rei da Comédia em Portugal), com argumento de Paul Zimmerman, baseado num romance do mesmo autor, é, contrariamente ao que seria de esperar, tematicamente muito semelhante a Taxi Driver. Retrata o percurso de Rupert Pupkin (De Niro), um aspirante a "stand-up-comedian", a sua clara obsessão pelo mundo do showbiz e, mais concretamente, pela imagem pública de Jerry Langford (Jerry Lewis). Langford é um reputado apresentador de um talk-show televisivo chamado The Jerry Langford Show (espelho do programa mais famoso da televisão americana entre 1962-1992, o Tonight Show com Johnny Carson) e Pupkin ambiciona precisamente ter acesso a um segmento desse programa. A personagem de De Niro constrói então todo um conjunto de ilusões em torno desse momento, que ele acredita ser passível de concretização. Juntando os seus esforços a outra fã obcecada de Langford (Sandra Bernhard no seu primeiro papel), eis a mistura perfeita para a explosão final. Levantando questões interessantes sobre o mundo da televisão e da forma mediatizada como a sociedade se revê a si própria, The King of Comedy resulta muito bem, criticando subliminarmente a própria noção de celebridade e a busca quase patológica com que muitos procuram esse estatuto.
Tal como muitos outros filmes de Martin Scorsese (à excepção de The Departed: Entre Inimigos, que parece inverter a tendência) The King of Comedy também não teve muito sucesso comercial. A sensação de flop comercial foi tal, que o estúdio até decidiu cancelar a distribuição nos EUA logo nos primeiros meses de exibição. Mesmo na Europa, o filme acabou por não ter muita atenção, tendo sido transmitido na televisão inglesa logo no mesmo ano. Tal insucesso talvez se justifique devido à linha que Martin Scorsese seguia, apostando em filmes bem mais violentos, sombrios e mais trabalhados visualmente. Recorde-se que este filme representaria o regresso da colaboração Scorsese-De Niro depois de passados três anos da estreia de Raging Bull, visto como sendo o melhor filme da dupla até ao momento. The King of Comedy era assim aguardado com muita expectativa, sendo publicitado pelo estúdio como comédia, algo que certamente poucos associariam a Martin Scorsese e a Robert De Niro. Além do mais, seria o regresso de Jerry Lewis ao cinema, pelo que se esperaria uma comédia verdadeiramente hilariante. Expectativas defraudadas, mas, ainda assim, o registo é muito bom. Apesar da fraca recepção junto do público, aquando da estreia, The King of Comedy chegou a ganhar um BAFTA para Melhor Argumento, o prémio da critica londrina para melhor filme do ano e o prémio da critica americana para Melhor Actriz Secundária (Sandra Bernhard). Anos mais tarde, porém, as coisas mudaram. Com a força e poder mediático da televisão, nova atenção foi dada ao filme.
The King of Comedy é um filme interessante, retratando diversas questões que viriam a marcar a era Big Brother por exemplo. Tópicos como a fama e estrelato, a identidade enquanto problemática associada à fama e superficialidade do mundo mediático e a própria natureza da sociedade e valores do mundo moderno estão bem presentes, de forma coerente, suave e, ao mesmo tempo, perturbante. Como Bem Nyce constata (Scorsese Up Close: A Study of the Films), Scorsese apresenta-nos um mundo vazio simbolizado pelo microcosmo da televisão. A narrativa deste pequeno filme é muito similar à de Taxi Driver,com uma violência quase caricata fisicamente, mas com alguma intensidade psicológica. Pupkin é um Robert De Niro completamente irreconhecível, num dos seus melhores desempenhos. Funciona mesmo como uma reedição ou upgrade para os anos 80 e 90 de Travis Bickle. Personagem agradável, simpática até, mas que, tal como Travis, vive de obsessões e tudo faz para conseguir o seu objectivo central – entrar no programa de Jerry. O crime, tal como em Taxi Driver é a solução, e, imitando o percurso de Travis, também a solução final é bem vista pela sociedade. Pupkin acaba redimido pela mesma sociedade que o reprime, sociedade aqui simbolizada pelo mundo da Tv. O final está repleto de ironia, dando um murro no estômago do código de valores que nos orienta.
Martin Scorsese apresenta uma realização bastante sólida, socorrendo-se da equipa vencedora com que trabalhou nos seus filmes anteriores (que mantém), nomeadamente a sua colega de universidade, a editora de montagem de Raging Bull, Thelma Schoonmaker. Apostando, como é habitual, em movimentos de câmara constantes e em engenhosa montagem, Scorsese transmite-nos realmente a sua visão e põe na tela de forma inteligente os argumentos com que trabalha. Exemplificativo disto mesmo é a forma como o filme está montado. Seguindo um modelo convencional na maior parte do filme, há em determinados momentos a materialização das ilusões de Rupert Pupkin, dando-nos acesso às suas fantasias – exemplo perfeito sendo o jantar que Pupkin imagina com Jerry. The King of Comedy é de facto uma comédia negra, que prefigura aquilo que virá a ser After Hours dois anos mais tarde. A sequência de abertura é genial, servindo de comentário a todo o restante filme e deixando antever o final. No meio de uma enchente de fotógrafos, caça autógrafos que perseguem Jerry Langford enquanto este tenta, a custo, entrar na sua limusina pessoal, surge a figura de Rupert Pupkin. Este aproxima-se de Langford e, enquanto o ajuda a entrar por entre a confusão, eis o toque de Martin Scorsese: a imagem pára, um freeze-frame coloca-nos o rosto de De Niro bem no centro da tela. Com a câmara dentro da limusina, temos acesso ao rosto do actor. É então que entra o genérico do filme, como que dando destaque à figura de Pupkin, simulando mesmo o efeito-tv. Interpretações sólidas (Sandra Bernhard com o seu estilo agressivo assusta, estreia soberba), narrativa bem delineada e uma mistura entre convencional e inovador que vai caracterizando o cinema de Scorsese. Ingredientes que, para mim, fazem deste filme um dos melhores da sua carreira.
Classificação - 4,5 Estrelas Em 5
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