segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Crítica - Hunger (2008)

Realizado por Steve McQueen
Com Michael Fassbender, Stuart Graham, Liam Cunningham, Liam McMahon, Brian Milligan

A dívida para com o pânico e o primitivismo emocional deve justificação a um dos melhores filmes do ano. Passou recentemente por salas lusas e, a reter no horizonte está o nome de Steve McQueen. Artista plástico britânico, Vencedor de inúmeros e dispersos prémios pelos mais prestigiados festivais com a estreia, agora em tela, onde se destacam o Gucci no Festival de Veneza e o Cámera d’Or em Cannes. Dono de uma realização extraordinariamente poderosa, persuasiva e militante visual analítica ao que se incisa preencher no(s) rico(s) cenário(s) do cinema independente hodierno, Hunger sente os pressupostos de cor-base da vanguarda semântica explodir figurativamente num baralho ortogonal, sangrento e irregular na narrativa com autonomia, pesquisa plástica, espiritualidade, ritmo cósmico violento baseado em factos reais sobre tema(s) - politica, religião, valores humanos, família, pátria, fé e antítese da crença no invisível [com tanta carne, nudez, im e explícita] – que, hoje, estando grande porção do cinema agregada ao motor reflexivo social sobre a própria órbita de quem o assiste, são os que mais importam destacar. McQueen é um bónus deste parágrafo. Aproveitem.
Em 1981, Bobby Sands, activista do IRA (Irish Republican Army) depois de ter sido condenado a 14 anos de cárcere por posse de armas, inicia uma greve de fome com o objectivo de reclamar melhores condições para todos os prisioneiros do IRA, recuperar estatutos, direitos e dignidade humana perante um estabelecimento claustrofóbico em Belfast, onde se encontra. A originalidade do argumento é de uma natureza expressiva tão assombrosa que pelo carácter poético extremo concebido por Enda Walsh, dramaturgo irlandês, permite à realização homologar por inventário uma Forma de Ser, de Estar no espírito abstracto de Sands, no olhar límpido, convicto de Michael Fassbender, de um homem que quer e consuma acreditar nas suas convicções forjadas de motivo até às últimas consequências. O filme tem, inclusive, sido criticado pela violência visual que apresenta em constante desafio ao limite, radical e permanentemente tenso, mas indizível pelo hardcore; descansem os mais susceptíveis. Hunger, é mais. Na realização e no sentido. Já não vivemos numa época em que a arte seja útil à vida, com a qual nos (artistas) parece impossível trabalhar em comum. McQueen explora, com estágios, todo o horror do protesto. São-nos apresentados 3. Convite à experiência, ao instinto e emoções humanas mais primitivas, onde, como unidade existencial colectiva e individual a vida não pode absorver toda a construção cromática, motivo da asfixia pela convicção.
Primariamente pela entrada de um novo recluso, Davey, que se junta a Gerry numa cela insuportável pela dimensão afunilada e imundície que fazem de qualquer hipérbole uma rota mecânica de algodão intuído por cetim, onde têm por veículo de protesto o «Blanket and No-Wash Protest», iniciado 5 anos antes da greve de fome, em 1976. Como primeiro footstep na luta, resulta por impulso fauve, onde a angústia é liquefeita ao inquietante, a impureza do trato para com os prisioneiros transportada do insuportável ao estado inconsciente, a extrema violência perpetrada atinge grande dramaticidade e uma realidade objectiva ressaltada a negro bem sujo. No tumulto, é de louvar a preocupação em não repetir ideias, atribuindo qualidade super ao guião. E os sentidos acompanham de forma vassala, por incrível que possa parecer. E o que fica por contar é mais crónica do que emoção – para McQueen não importa retratar Hunger como um filme político ou documento de um facto hoje histórico, mas, o simbolismo, a dor, o choro heróico.
Seguimos para a segunda parte: o contexto. Depois do bidimensional assalto traumático com que McQueen define entusiasticamente, repleto de essência, ao longo dos primeiros 45 minutos no espaço pictórico as emoções estéticas que ordenam Hunger, introduz-se em contra-luz o diálogo entre Sands e um padre - Moran. Um único take com cerca de 20 minutos onde para além da contextualização política do conflito ser revelada, serve de cena rainha de Hunger, a imagem de marca (um discurso em voice over de Margareth Thatcher brindado com uma cena plena de conteúdo visual e simbólico, «o estratega» na sintaxe) e contraponto situacional naqueles 66 dias de greve que acabarão por ceifar a vida de Sands - Pela determinação que, no discurso entre ambos, triunfa sobre a tentativa “divina” para dissuadir Sands da greve de fome, apelando ao menos sôfrego suicídio. O discurso cria uma barreira propulsora, definitiva. Sands escolhe a morte e reivindica a dignidade possível do acto com perseverança inabalável.
A terceira parte divide-se entre simbolismo, dimensão, expressão e consequência. São os últimos dias de Bobby Sands, que usa, tal como os companheiros, o corpo como última arma de protesto. Contínuo no arrojo visual que caracteriza a primeira parte da odisseia, o equilíbrio harmónico entre o declínio, a depressão emocional e renovação plástica ao nível da produção é intrigante, absorvente, fugidia mas parceira da perda enérgica de Sands. Definha nestas brasas visuais. As perdas perceptivas, a deformação fisionómica a nível patético joga cinábrio polémico, chocante. Pudor não consta do traço nos pontos de fuga e Hunger sai pela única porta digna em Maze, Belfast.

Classificação - 5 Estrelas Em 5

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