quarta-feira, 30 de julho de 2008

Crítica - The Science of Sleep (2006)

Realizado por Michel Gondry
Com Gael García Bernal, Charlotte Gainsbourg, Alain Chabat, Miou-Miou, Emma de Caunes

Em “O Despertar da Mente”, Michel Gondry oferecia uma visão singular e extraordinária do que se passa na mente humana quando estamos inconscientes. Tratava-se de uma viagem pelos caminhos turtuosos do cérebro, das memórias que retemos, do rasto deixado por todas as experiências, tudo o que vemos e ouvimos e assimilamos. Imagens e sons revolteiam em impulsos eléctricos, entrelaçam-se e fundem-se, dando origem a sonhos bizarros e desconexos, recordações cruzadas de acontecimentos que podem ou não ter ocorrido. Em continuação, “The Science of Sleep” explora mais o mundo dos sonhos e a linha ténue que o separa do mundo real.
Stephane Miroux (Gael Garcia Bernal) é um jovem criativo, cheio de ideias para invenções, que tem alguma dificuldade em discernir a realidade da fantasia porque não se apercebe de quando adormece. Stephane muda-se para Paris por causa de um emprego “criativo”, que acaba por ser tudo menos criativo, e trava conhecimento com a vizinha Stephanie (Charlotte Gainsbourg) e a amiga Zoe (Emma de Caunes). Inicialmente interessado por Zoe, Stephane cedo se apercebe que Stephanie tem muito da sua sensibilidade e criatividade, e também ela reconhece nele e na sua capacidade de sonhar um pouco de si. Mas a insegurança do primerio cedo irá pôr em risco a relação em desenvolvimento.
O realizador transpõe, mais uma vez, o que são basicamente sensações para imagens e sons, de uma forma original e imaginativa, que tem como resultado algo que todos reconhecemos como razoavelmente próximo daquilo que experienciamos quando adormecemos. Mas podemos interpretar a história como uma metáfora ao nosso papel social enquanto pessoa que tem de interagir com outras e àquilo que é esperado de nós. Quando uma pessoa conhece outra de quem gosta e a quem quer agradar, como deve proceder? Como se sabe se a outra pessoa está receptiva ou não? Dúvida constante, medo constante, entusiasmo constante, tudo misturado e centrifugado pelo cérebro e cuspido pelo corpo em palavras, gestos e acções que não sabemos estarem certos ou errados. Simbolicamente, o relacionamento entre Stephane e Stephanie e os mal-entendidos devido à linha difusa entre sonho e realidade são, no fundo, consequência da incerteza, da falta de confiança e do estado de constante mal-estar no início de uma relação afectiva. A personagem mais marginal, quando confrontada com a realidade, refugia-se no seu mundo, neste caso no dos sonhos, de modo a defender-se de um outro mundo que não compreende, cheio de regras e códigos a seguir implicitamente. A sua perspectiva é-nos apresentada sempre no limiar dos dois mundos, entre o que acontece na realidade e o que ele gostaria que acontecesse, no sonho, desafiando-nos a identificar por nós próprios.


É um tema muito recorrente, que neste filme adquire uma qualidade muito especial em termos visuais, como já acontecia em “O Despertar da Mente”. Distorsão e miscelânea de elementos do dia-a-dia com elementos fantásticos, em personagens, objectos, situações, cenários. O mar de celofane, a Arca de Noé para árvores, a Desatrologia, o pónei de trapos que ganha vida. Por outro lado, introduzem-se conceitos como a “TV do Stephane”, na linha da ideia de que cada um vê e interpreta o que o rodeia de uma forma única, e que essa assimilação permite que cada um lide com o seu mundo à sua maneira. E a máquina do tempo que nos transporta um segundo à frente ou um segundo atrás no tempo, que enfatiza o medo adolescente de errar uma e outra vez, ou desejar estar um passo à frente no tempo para não ter de decidir o que fazer a seguir. Quando viramos e reviramos na cama à noite a pensar naquilo que devíamos ter feito e não fizemos ou naquilo que fizemos mal e gostaríamos de refazer. Joga-se também com a ideia de mundo real e mundo de sonho serem simplesmente duas realidades paralelas que se intersectam e trocam informação. Ou seja, se os sonhos são compostos por pedaços distorcidos de real e pedaços de fantasia, o que impede que o mundo real seja composta por pedaços de realidade e pedaços distorcidos de sonhos?
Gael Garcia Bernal compõe na perfeição uma personagem sonhadora e inocente, um rapaz de 13 anos que se vê preso num corpo adulto e não sabe muito bem o que fazer de si próprio. Por um lado, é perseguido pela imagem da mãe, que continua a dizer-lhe o que deve fazer, por outro tem de lidar com gente adulta do emprego que tem motivações estranhas, enquanto enfrenta os sentimentos que Stephanie desperta nele. Charlotte Gainsbourg dá vida a uma personagem mais terra-a-terra, apanhada nos meandros do mundo real e conformada com tal, mas não feliz. Stephane fá-la relembrar de como se sonha e redescobrir o seu mundo de fantasia. Todo o filme apresenta um registo muito Terry Gilliam mas sem a alucinação nem a psicose. Se bem que, por isso mesmo, nos dê por vezes a sensação de estarmos perante um filme ternurento para crianças, ou melhor, para a criança que há em nós, a que tem medo de crescer.
Gondry realiza e escreve uma história simpática e coerente, algo ingénua, mas com a qual é muito fácil de identificar. Não alcança a genialidade de “O Despertar da Mente”, com a assinatura de Charlie Kaufmann, que partia de uma premissa fabulosa e conseguia ser uma fantasia bem elaborada e desenvolvida sem obedecer às regras do tempo, tal como também o nosso cérebro nem sempre obedece. Há ainda uma diferença muito importante. Em “O Despertar da Mente”, as personagens aceitavam o facto de não lhes ser possível ter a “felicidade eterna de uma mente imaculada”. Aceitavam que o preço do amor é ser imperfeito, turbulento e, por vezes, efémero, que as relações podem trazer mais sofrimento do que alegria mas que é importante tê-las, com todos os altos e baixos. Aceitavam que todas as pessoas deixam uma marca no nosso cérebro e ficam a fazer parte de nós, por muito dolorosa que seja a recordação. Em “The Sience of Sleep”, fica-se com a ideia de que as personagens escolhem a fantasia, ou pelo menos o meio termo, porque na fantasia é muito mais fácil lidar com os sentimentos e tudo está sob o nosso controlo. Tudo é perfeito e o outro é apenas uma projecção do que nós queremos que ele seja, sem perigos, sem surpresas. Não se adaptam ao mundo real, o que significa que não há perda de inocência, mas não há mais nada. O amor resume-se à idealização de conto de fadas, ao “viveram felizes para sempre”. Este pormenor não se trata de um defeito do argumento, trata-se apenas de uma escolha de rumo. Ingénuo, mas aceitável. Terry Gilliam também nunca foi homem para se adaptar ao mundo real e sempre se deu bem com isso (ou então não). Para primeiro argumento, é uma pequena maravilha e há potencial para, no futuro, serem feitas grandes maravilhas.

Classificação - 4 Estrelas Em 5

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