quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Espaço Séries: Boston Legal


Boston Legal parece mesmo uma série de advogados... Senão repare-se no nome, no espaço físico onde se desenrola a acção, na profissão das personagens, nas estórias que compõem cada episódio. Em cada segmento de pouco mais de 40 minutos o espectador é presenteado com um "momento WTF" antes do genérico. Em regra do foro jurídico, ou não seria esta uma série que parece mesmo ser subsumível à tag "advogados". Vem o genérico, irreverente ainda que dentro da restrição fato e gravata... e os casos, com os advogados da "Crane, Pool & Schmidt" e as suas condutas muito pouco ortodoxas que em regra, contra as probabilidades e as leis da lógica, acabam por sair vitoriosos dos seus pleitos. No final, Denny Crane e Alan Shore, magnamente interpretados por William Shatner e James Spader, celebram a amizade improvável e partilham ideias antagónicas com wiskey e charutos, na varanda do escritório, naquele período de tempo em que regressariam ao lar, se por acaso o lar de ambos não fosse justamente aquela varanda.

Parece mais do mesmo? Não é. David E. Kelley redimiu-se do drama de The Practice e não abusou dos limites da paciência do espectador como em Ally McBeal . Digamos que Boston Legal tem a equação perfeita de ridículo, irónico, dramático, assertivo, irreverente, impossível e real. Não é para ser levada a sério, mas que não se caia no erro de tomar esta série como uma vulga comédia. O entertainment tem aqui um paradigma de exacta conta e medida. É esta a série em que o par de heróis de serviço é composto por uma pessoa de ética vincada, conduta promíscua e acções mormente ilícitas, marcadamente democrata, ao passo que o outro, repulicano convicto da hegemonia dos EUA, possuidor de um arsenal que incautamente dispara nos momentos menos oportunos (ou mais, ajuize quem bem entender, a seu belprazer...), politicamente incorrecto, patriótico até à cegueira, obviamente que tão ou mais promíscuo que o seu melhor amigo. E são os heróis Denny Crane e Alan Shore, tomados na pele por aquela que provavelmente será a melhor dupla de actores da TV desde Gillian Anderson e David Duchovny. Disse-me um colega, fã inveterado da série, que Spader nasceu para interpretar Alan Shore. Não creio, por tendência, em predisposições do destino, mas basta assistir a um par de minutos de alegações finais ou aos diálogos na varanda com Shatner para perceber que talvez aqui se confirme que há coisas que estavam predestinadas... ou então que há conspirações cósmicas para o magnífico tomar lugar.

Mas nem só de Alan Shore vive Boston Legal, porque esta série, embora peque grotescamente em certos pontos (entram e saem personagens sem satisfações aos espectadores, na sua ânsia de marcar diferença e afrontar limites cai em exageros alienantes, etc), é informada de uma auto-confiança que depois de ganhar corpo (ali mais ou menos a meio da 2ª temporada) cria mesmo habituação no espectador... pensando bem no assunto, e tomando em conta que só neste mês já virei duas temporadas de Boston Legal sacrificando horas de sono a favor dessa demanda audiovisual, devia processar a ABC :p E tal habituação nunca seria possível sem uma criatividade que nunca se divorcia da realidade, abordando temas como New Orleans e o Katrina, companhias petrolíferas a pagar estudos sobre o aquecimento global à nata da comunidade científica, discriminação dos menos dotados social e esteticamente, e por aí adiante, sempre com a exacta dose de humor, acutilância e dissertação informadora. O espectador americano leva doses assinaláveis de ensinamentos éticos e morais com algo que parece mesmo uma série de advogados. As personagens só pecam pela instabilidade que a uma dada altura a sua presença passa a ter aos olhos do espectador, o qual se pergunta por metade das pessoas que dantes via no genérico e subitamente desapareceram sem que qualquer justificação aceitável lhe seja apresentada. Porque em tudo o resto elas tocam a perfeição. Poderia enumerar umas quantas, mas seria excessivo e fastidioso para quem lê (se é que ainda alguém está a ler isto...). Daí que enumere somente mais duas além daquela dupla de "heróis" que carregam praticamente sozinhos esta série que parece mesmo ser de advogados.

A primeira é interpetada pela veteraníssima Candice Bergen, de seu nome Shirley Schmidt, sexagenária que representa tudo quanto o feminismo não excessivo pretende para a mulher. De um modo subtil entra na série no início da segunda temporada e passa a exercer um contrapolo admirável relativamente àquela dupla supra mencionada. É preciso vê-la para compreender porque escolhi mencioná-la. A outra personagem é mais fruto da minha subjectividade do que do seu papel central da trama: Jerry Espenson. Interpretado pelo já muito rodado Christian Clemenson, que apesar da sua larga carreira televisiva leva a lamentar que a sétima arte não lhe abra as portas para algo de dimensões razoáveis. Ele é a caricatura do académico brilhante, do jurista nerd que apesar da sua genialidade tem zero de social skills, excruciado a cada contacto com estranhos, inseguro e solitário. A partir dele se retrata a violência que é viver em sociedade e a pequenez do homem anónimo, por maiores que sejam a sua inteligência e humanidade. E depois as situações surreais em que acaba por ser demandado são um mimo! Talvez esta não seja, nem de perto nem de longe, a melhor e mais clara forma de lhes expôr a série. É que não é lá muito fácil escrever sobre uma série que parece mesmo ser sobre advogados. Mas não o é realmente, porque esta é uma série sobre dois amigos, que, porque impensavelmente fariam outra coisa na vida, são advogados. E como são advogados trabalham num escritório, onde por acaso um deles calha a ser a maior lenda viva da advocacia embora os seus tempos áureos sejam pretéritos em face de uma doença neurodegenerativa que todos parecem interessados em disfarçar. O resto é tão ou mais incidental do que isto. O quadro todo é que resulta na perfeição: e parece mesmo uma série de advogados... que é sobre dois amigos, e mais uns quantos seres humanos, no mundo em que com maior ou menor dose de surreal e caricato, todos nós vivemos. Boston Legal relembra porque motivo a TV ombreia com as salas de cinema nos dias de hoje.

Classificação - 4,5 Estrelas Em 5

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